segunda-feira, 20 de julho de 2009

Persperctivas para ação e fruição em Arte Contemporânea.


Banksy, artista de rua inglês, identidade desconhecida

HARETHON SILVEIRA DOMINGOS
Belo Horizonte 2005

Conta-se que Maurice Barrès, ao receber certo dia um jovem escritor que desejava explicar-lhe suas idéias, disse-lhe: “vossas idéias, bem as compreendo, mas qual a vossa sede?”
A história da arte compõe-se primordialmente de rupturas. Estas, normalmente estéticas, logo se apóiam em conteúdos, métodos e argumentos, criando um modo de enxergar diferente do que existia. Deixa-se de lado o olhar antigo e se adota um novo.
E a arte contemporânea, com que rompeu? Rompeu com essa idéia, hoje ela agrega tudo. E como se lê tudo isso? Eis a sede deste texto.
A produção contemporânea em arte consiste, inicialmente, na liberdade de criação e apropriação por parte dos que a produzem; e posteriormente, na livre interpretação e leitura por parte dos que dela fruem, para depois se configurar em interatividade ou troca entre esses dois sujeitos (artista e observador) interligados pela obra em um contexto determinado.
Sobre o público atual, existe de um lado um grupo que possui certa especialização e aprimoramento visual crítico, alçados na sofisticação do seu discurso que domina um conjunto de termos técnicos e referenciais pertinentes às artes plásticas. De outro, conta-se com um grande contingente de não especialistas, desarmados de conceitos oriundos da academia, que podem, no momento de interação, levar a obra a uma possível falência dos significados estruturados pelo artista ao concebê-la.
Muito bem, e não é este o salto dado pela arte contemporânea? A de poder, assim como nas vanguardas, ousar formas de expressão calcadas em bom conteúdo intelectual e literário, haja vista o grande número de manifestos publicados no período moderno? Há quem diga que atualmente o discurso tomou o lugar da obra, o artista contemporâneo, além de propor um jogo ou ação participativa, existente conscientemente desde a década de 60, tem ainda ao seu dispor a tecnologia digital, composta por algarismos binários que substituíram o pincel por equações matemáticas codificadas em pixels que substituíram a tinta na obtenção de imagens. Tudo isso sem falar na participação imersiva permitida pela obra de arte digital.
Refletir ao invés de contemplar e propor ao invés de criar atinge-nos com a força de uma borduna rival. A obra é o campo de luta. Um golpe parte do artista (significante/obra), uma reação emerge do público(significado/leitura).
Essa troca é um critério para tornar o estudo da arte relevante. Para tanto, no caso da história da arte, tal reflexão exigirá um conhecimento prévio de determinados signos e símbolos para se alcançar tal discernimento. em Arte Contemporânea, o histórico cognitivo do espectador, suas próprias experiências, substituirão o conhecimento prévio desses símbolos na busca de significados. Há aqui a necessidade de recortar no tempo o conceito de “Arte Contemporânea”, obras que não mais se pareciam com aquelas feitas pelos modernistas.
O conceito modernista de antropofagia, alinhavado à luz das considerações de alguns autores que contribuíram para o pensamento artístico ocidental: Imanuel Kant, Friedich Hegel e Marcel Duchamp.
Hegel, filósofo do século XIX, posicionou-se de forma a considerar a Arte em um sentido pedagógico:

"Se se quer designar à arte um objetivo final, só pode ser o de revelar a verdade, de representar de modo concreto e figurado o que se agita na alma humana...”

Mais significativo ainda, é quando o mesmo autor diferencia uma “planta rara e magnífica” de um trabalho de arte, atestando que:

a obra de arte, porém, não apresenta este isolamento desinteressado: é uma interrogação, um apelo dirigido às almas e aos espíritos”.

Kant,outro filósofo do novecento, por sua vez, teria dito que a contemplação desinteressada da beleza não é conhecimento. 
Marcel Duchamp, considerado o precursor da arte contemporânea, inaugurou uma nova espécie de “sublimação” da obra de arte com a idéia de “coeficiente artístico”, onde o mesmo entende que é o espectador quem:

“... estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, dessa forma, acrescentando sua contribuição ao ato criador.”

Este novo critério de apreciação artística é oriundo do século XX, estabelecido pelo diálogo e pela participação ativa, mesmo que apenas em um campo conceitual absolutamente livre e normalmente contextualizado. Pelo jeito atual de trabalhar a imagem, cabe dar-lhe mais e outros sentidos, potencializá-la, buscar conexões, contaminações, interpretações.
Enriquece pensar a produção artística atual como um laboratório científico, pertencente ao campo do conhecimento formal que comporta tanto o prazer estético descomprometido quanto a apreensão de seus conteúdos. O que não significa dizer que a arte contemporânea ficou órfã do sentido de entretenimento e sem querer outorgar a ela uma adoção forçosamente intelectualizada.
A “ação” artística deve ser considerada em relação à interação espectador e obra de arte, que exigindo do artista a consciência desse processo, o fará tentar fugir das simplificações que não raro representam empobrecimento textual. Desse forma, o mesmo se fará um propositor de “ações fruitivas”, que segundo o artista, escritor, crítico e curador Ricardo Basbaum:

“... traz em si a provocação, o convite de quem esta chamando para uma conversa”.

Enquanto apropriação de idéias, hoje encaradas como matéria prima no que se convencionou chamar de pós-produção(processo heterogêneo de ajuntamento e adequação de linguagens pré-existentes para a obtenção de um trabalho artístico) fica fácil fazer a analogia entre o guerreiro em busca da força de um inimigo abatido em terreiro, o artista em busca de conceitos e formalizações pertinentes ao seu trabalho e o espectador que busca referenciais para racionalizar sua observação. Em todos os casos o conceito antropofágico faz-se presente. Até aí não existe nenhuma novidade, o fim das fronteiras que delimitavam e nomeavam as manifestações artísticas até a metade do século XX deu origem ao que se convencionou chamar de arte híbrida, um bom nome, que acabou por extinguir os critérios até então canonizados pelo universo cada vez mais amplo da arte.

Referências:
Banksy. Artista de rua inglês, identidade desconhecida. (imagem)
BATTCOCK, Gregory (org). A NOVA ARTE. Perspectiva. São Paulo. 1986.
BASBAUM, Ricardo (org). Arte Contemporânea Brasileira: texturas, direções, ficções, estratégias. RJ: Rios Ambiciosos, 2001.
BOURRIAUD, Nicolas. Post producción, la cultura como escenário. Adriana Hidalgo, buenos Aires. 2004.
CHEVALLIER, Jean Jaques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. Agir S. A., 1998.
VAZ, Paulo Bernardo e CASANOVA, Vera (org). ESTAÇÃO IMAGEM: desafios. UFMG. Belo Horizonte. 2002.
ECO, Umberto. Obra aberta. Perspectiva. São Paulo. 2001.
HEGEL. G.W.F. preleções sobre estética. Editora Abril. SP. 1974
LACOSTE, Jean. A filosofia da arte. Jorge Zahar editora, RJ. 1986
KANT, Emmanuel. Observações sobre o belo e o sublime. Papirus. São Paulo. 1976.

Música brasileira: a solução antropófaga.


 Tarsila do Amaral, Antropofagia 1929
Este texto traça um paralelo entre o conceito de antropofagia, sua fenomenologia para os indígenas brasileiros que a praticavam, a adaptação modernista de produção artística e as reverberações dessa ideia em nossos dias.
Dos indígenas brasileiros sobre os quais existem relatos de antropofagia, sabemos que ao devorarem um inimigo, protagonista do ritual, é importante salientar, esses só comiam os julgados bravos. No poema de Gonçalves Dias, I-Juca-Pirama (1868), um guerreiro tupi aprisionado em batalha pelos timbiras e esperando por sua morte, chorou ao pensar em seu pai, já muito velho para sobreviver desamparado. Diante do choro do inimigo, ao julgar ser aquilo um sinal de fraqueza, o chefe timbira o preteriu dizendo: “'Nós outros, fortes Timbiras, só de heróis fazemos pasto.'”. No final da história ele, nosso protagonista, por mando de seu orgulhoso pai, retornou para lutar contra toda a tribo inimiga e ganhar deles, novamente, o reconhecimento de bravura para ser comungado pelos seus tradicionais oponentes. Sacrifica-se a vida para manter a honra de um povo inteiro. Se a tribo rival fosse de canibais, o jovem bravo teria sido comido, assim mesmo. Talvez ele fosse amordaçado antes de ter o seu crânio rachado. Antropófagos devoram para obter um valor, não para matar a fome. 
Os modernistas se apropriaram desse conceito, Mário de Andrade, no texto Aspectos das Artes Plásticas no Brasil (1928), argumentou que o século XVII tem suas obras mais representativas elaboradas por mulatos: “Homens livres que estavam numa situação particular, desclassificados por não terem raça mais” . Por isso, continua o autor: “a solução brasileira da colônia, é o mestiço e é logicamente a independência (artística). Deforma a coisa lusa, mas não é uma coisa fixa ainda.”  Esse estilo: “era de todos, o único que se poderá dizer nacional, pela originalidade das suas soluções.” 
Entre os anos de 1928 e 1929 circulou a Revista de Antropofagia, cujo Manifesto Antropófago foi o mais radical da primeira fase modernista, aqui no Brasil. Tinha sido impresso no Diário de São Paulo e propunha, basicamente, a devoração da cultura e das técnicas importadas e sua reelaboração, transformar o produto importado em elemento original. Na primeira “dentição” afirmava-se: “a revista de antropofagia não tem orientação nem pensamento de espécie alguma: só tem estômago.”. Essa é a defesa de Oswald de Andrade ao movimento homônimo, criado no final dos anos 20, uma forma de solução híbrida que definiria nosso jeito de fazer arte, inclusive música.
Antes desse manifesto, em 1924, foi publicado no Correia da Manhã o Manifesto Pau-Brasil. Também escrito por Oswald de Andrade e ilustrado por Tarcila do Amaral, homônimo do primeiro produto brasileiro tipo exportação, lia-se: “não fomos catequizados, fizemos foi Carnaval.”.

A Semana de Arte Moderna de 1922 estimulou as discussões sobre os caminhos que deveriam ser trilhados pela música brasileira. Na música erudita Heitor Villa-Lobos buscou uma linguagem tipicamente brasileira, com o uso de instrumentos muitas vezes inusitados. O maestro compôs uma série de choros que vai do nº1 ao nº16. No Ensaio Sobre Música Brasileira, também de 1928, Mário de Andrade teve como proposta central que os compositores buscassem inspiração, prioritariamente, na realidade nacional, com especial atenção ao folclore.
Os instrumentos herdados da tradição europeia (violão, piano e flauta), junto com uma infinidade de percussões tradicionalmente indígenas e africanas, fizeram com que a música popular se enriquecesse e alcançasse, com o auxílio do rádio nas décadas de 30 e 40, sua “época de ouro”. São representantes desse momento: Alfredo Viana Filho (pixinguinha), Noel Rosa, Ari Barroso e Carmen Miranda. Esses dois últimos possuidores de uma fluente ligação com Wall Disney e com o cinema norte americano. 
Nos anos 50 a estranha fusão do samba tradicional com o cool jazz produziu a Bossa Nova. A harmonia jazística, as batidas sincopadas do violão, mais a interpretação intimista e suave fizeram da Bossa Nova uma referência da música brasileira. Foi a partir da Bossa Nova, nos anos 60, que a MPB fundiu elementos da música erudita (instrumentos e formas de composição) aos ritmos folclóricos e de raízes. A produção musical desse período foi marcada pelo protesto, com o surgimento de compositores reconhecidamente militantes na política estudantil, quase todos vinculados ao Centro Popular de Cultura (CPC) e a União Nacional dos Estudantes (UNE).
A década de sessenta conheceria ainda a Tropicália, uma complexa fusão da MPB, ritmos latinos e ingredientes da música erudita e do rock. A Tropicália deu uma nova dimensão aos textos de Oswald de Andrade e dos concretistas, tudo dentro das concepções plásticas de Hélio Oiticica. Ou seja, tudo muito lisérgico, híbrido e vanguardista. Sua forma identificada com a contra cultura valeu ao Tropicalismo pesadas críticas daqueles que buscavam a trilha para a “autêntica” música brasileira. A Tropicália foi um movimento iniciado em 1967 e retomava as linhas gerais da Semana de Arte Moderna e do movimento antropófago. Em 1967, Gilberto Gil quis algo diferente com a música Domingo no Parque, classificada para o 3º Festival de Música da Record, junto com Os Mutantes e o maestro Rogério Duprat. A música não venceu o concurso, mas lançou as bases para o movimento tropicalista
Da revisão tropicalista do conceito modernista de antropofagia, resultou a fusão de nossos ritmos tradicionais ao rock. A Tropicália não teve tempo de criar uma forma, um corpo sonoro definido, pois foi desarticulada em 68 com o exílio de Caetano e Gil em Londres. 
A Jovem Guarda, já havia, de fato, introduzido inovações como a guitarra elétrica e a mini-saia, porém não rompera com a plástica tradicional da música de entretenimento. A Bossa Nova, por sua vez, era uma música feita por uma juventude instruída, criticada como uma música de elite (zona sul carioca) e alheia aos problemas políticos de sua época. A Tropicália trouxe uma contestação mais estética que política, onde a maioria dos artistas rompeu com os conceitos tradicionais da música brasileira. As autoridades se chocavam com as tendências ultraliberais do grupo e viam mensagens contraventoras onde elas, de fato, não existiam. Claro é que tais artista não tinham a menor intenção de colaborar com a passividade "da massa". A música era ácida e despudorada, chocava boa parte do público. Tanto que veio a sofrer oposição dentro da própria MPB, onde músicos chegaram a organizar uma passeata contra essa tendência que, segundo eles, vinha: “tirar a pureza e a tradição da música nacional”. 
Interessante é refletir sobre o fato de tais oposições só servirem para dar notoriedade às tendências de vanguarda. O próprio Monteiro Lobato reagiu violentamente a uma exposição de Anita Malffati, em 1917, que expunha quadros que apresentavam tendências cubistas e expressionistas. Com um artigo intitulado Paranóia ou mistificação?, Monteiro Lobato escreveu: “Há duas espécies de artistas: uma composta pelos que vêem normalmente as coisas e em consequência fazem arte pura (...) a outra é formada dos que vêem anormalmente a natureza e a interpretam à luz de teorias efémeras, sob a sugestão estrábica excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência; são frutos de fim de estação bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes brilham um estante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento...” .  Cabe lembrar o que Oswald de Andrade escreveu no Manifesto Pau-Brasil (1924), anos depois dessa crítica de Lobato: “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres”.
A década de 90 teve o Mangue Beat pernambucano, com Chico Science ao leme e na retomada desses conceitos. O movimento Mangue Beat fundiu à música tradicional, o maracatu, que podemos enxergar até como música religiosa e misturou-a com o rock, o black music, o rap e com a música eletrônica. Segundo palavras do crítico Neil Strauss, NY Times, que havia assistido ao show do Nação Zumbi no Central Park, em 1995, "eles fizeram aquilo que somente um seleto grupo de músicos tem conseguido: criaram um híbrido capaz de evoluir até se tornar um estilo que um dia será hibridizado por outra geração”. 
Seguindo a tradição modernista dos manifestos, em 1992, Fred 04, do Mundo Livre SA, escreveu o Caranguejos Com Cérebro, que diz: "Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade (Recife) um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um 'circuito energético', capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.". Há também uma citação de Marco Frenette, publicada na revista BRAVO, que parece emblematicamente modernista: "Da Lama ao Caos [é] caso único na história do pop nacional, sendo, a rigor, o primeiro álbum de rock brasileiro, já que aliou a visceralidade e a violência sonora do rock com elementos culturais e ritmos nacionais. Não é rock inglês ou americano cantado em português, como até então acontecia, era rock brasileiro, rock de tambor.".
Esse jeito de misturar tendências é e sempre foi nosso melhor produto, esse pode ser visto em todos os campos, seja na dança, na literatura, nas artes plásticas, na arquitetura e naturalmente, na música. 

REFERÊNCIAS:
AMARAL, Tarsila. Antropofagia 1929 (imagem).
ANDRADE, Mário. Aspectos das Artes Plásticas no Brasil. BH: Itatiaia, 1984.
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3ª ed. São Paulo: Vila Rica; Brasília: INL, 1972.
CALADO, Carlos. A Divina Comédia dos Mutantes. SP: Editora 34. 1995.
NICOLA, José. Literatura Brasileira: das origens aos nossos dias. Scipione, 1998.
PONTUAL, Roberto (org). Dicionário das artes plásticas no Brasil. RJ: Civilização brasileira, 1969.
SXWARCZ, Lilia M. As barbas do imperador – D. Pedro II, um monarca nos trópicos. SP: Cia das letras, 1998.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. Petrópolis RJ: editora Vozes, 1973.
04, Fred, Caranguejos com cérebro, 1992.
FRENETTE, Marco, revista BRAVO!, novembro de 2002.