segunda-feira, 10 de agosto de 2009

UMA NOTA PRETA


Esta proposta foi afixada em 2004 em pontos de ônibus da avenida Olegário Maciel nos seguintes locais: Praça da Assembléia, Diamond Mall e o “Templo Maior” da Igreja Universal do Reino de Deus; todos situados na região sul de Belo Horizonte. Não se tratou de militância contrária ou favorável a qualquer partido, religião ou ideologia, mas pretendeu intervir conceitualmente no espaço público, causar discussão e incômodo fora dos sítios da Arte e, que sabe, difundir reflexões.
A defesa textual da proposta campeou personagens e fatos históricos que nesse contexto específico assumiram importância capital. Estes textos e conceitos serviram para enriquecer a proposta, porém não foram, e nem são, pré requisito para a fruição da mesma. O próprio design de nosso dinheiro, a nota de Um Real e o clássico texto: “DEUS SEJA LOUVADO”; pretende lidar com signos e valores contraditórios, porém socialmente relacionados. Um sintoma de nosso tempo.
As referências acadêmicas que geraram a proposta foram:
Walter Benjamin, filósofo pioneiro na discussão sobre a reprodução de imagens, vulto que traz consigo o altruísmo de um homem que não se rendeu ao dinheiro. Reza a lenda que ele não teria aceitado o convite para residir nos EUA durante a década de 30. Pois, segundo o próprio Benjamin, não desejava viver em um país que fizesse analogia entre Deus e dinheiro. Essa postura se deveu à frase impressa nas notas de dólar “IN GOD WE TRUST”, frase essa que para alguém profundamente religioso soava como blasfêmia. Difícil acreditar nessa história, principalmente quando o homem em questão era um judeu alemão perseguido pelos nazistas, aos quais fazia forte oposição. Walter Benjamim cometeu suicídio em 1940 durante a tentativa de fuga através dos Pirinéus, temendo ser entregue a Gestapo;
Martinho Lutero, um teólogo bem intencionado que teve a coragem de agir contra a prática católica das indulgências, afixando em 1517, na porta da catedral de Wintemberg, Alemanha, suas 95 teses protestantes. Teses essas que deram início à Reforma Protestante. Sua ação, mais que uma atitude política, ideológica e social, trazia uma idéia que contradizia dogmas profundamente enraizados na mentalidade de seus contemporâneos. Além de progenitor das religiões protestantes Lutero contestava o apelo material da fé católica, prática tão comum nas atuais igrejas evangélicas;
José Ortega Y. Gasset, espanhol que em seu livro, La Rebelión de Las Masas, de 1930, tratou da massificação do senso comum. Tendência apresentada palas sociedades modernas de padronizar gostos, hábitos e opiniões por meio de processos de simplificação que não raro representam empobrecimento cultural. Nas palavras do próprio José Ortega: “ser diferente es indecente. La masa arrolla todo lo diferente, egrégio, individual, calificado y selecto. Quien no sea como todo el mundo, quien no piense como todo el mundo corre riesgo de ser eliminado.” Ortega não trata especificamente das religiões, nem foi o primeiro a refletir sobre o fenômeno das massas. Mas levando em consideração a influência evangélica, inclusive na política, essa obra literária torna-se atualíssima e quase profética;
Max Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo -1904/05, sociólogo alemão oriundo de uma família de intelectuais protestantes, falecido em 1920. Escreveu o primeiro estudo interdisciplinar entre história, economia e religião. Nele Weber trata dos diferentes fundamentos católicos e protestantes a respeito do dinheiro e como isso influenciou o desenvolvimento econômico e social de países que adotaram como religiões oficiais o Catolicismo ou o Protestantismo. Com especial atenção à liberalidade protestante em relação ao lucro se comparada à visão católica em relação ao mesmo. Sabe-se que os países protestantes geraram um capitalismo mais eficiente e apostaram em políticas assistenciais filantrópicas, enquanto que países católicos encorajaram uma caridade ineficiente em suas políticas socioculturais.
A imagem intitulada NOTA PRETA: uma nota de Um Real ampliada sobre um fundo negro com os dizeres “Deus seja louvado”, em uma fonte igual, porém muito maior, não deve ser entendida como substância emotiva, e sim como conteúdo capaz de imprimir significações à imagem. Sua obviedade pode comprometer sua função como trabalho artístico ao dar um aspecto unicamente político e ideológico a intervenção urbana que propunha, inicialmente, se opor aos sofismas que justificam as mais absurdas teorias relacionadas ao poder econômico e a crença religiosa.
Importante é ter a consciência que a Arte pode ser engajada, porém não panfletária. Esse trabalho propôs também contestar a transformação de gente em rebanho, prática atroz que consiste em desacreditar a individualidade das pessoas por meio de dogmas elaborados demagogicamente. Nesse contexto se incluem muitos religiosos, políticos, publicitários e artistas e não foi por acaso o fato da imagem NOTA PRETA ter sido exposta em frente a um templo religioso, um shopping e um prédio dedicado à política, todos situados em uma das regiões mais valorizadas de Belo Horizonte.

Referências:
BENJAMIN, Walter: A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. 1936
GASSET, Jose Ortega Y.: A rebelião das massas. 1930
WEBER, Max: A ética protestante e o espírito do capitalismo. 1905
Seminário Arte Contemporânea: Políticas Institucionais, Práticas Curatoriais; Museu de Arte da Pampulha. BH 2004.